quinta-feira, 1 de abril de 2010

Música portuguesa forever

A lei que obriga as rádios a passar mais música portuguesa alterou por completo o nosso panorama radiofónico: hoje em dia ouve-se mais música em inglês.
Muito bem, talvez seja exagero. Mas não andará muito longe da verdade. A lei não obriga as rádios a passar uma determinada quota de música boa, até porque a qualidade da música depende de um critério subjectivo. O problema é que a nacionalidade da música também parece difícil de determinar objectivamente. Uma música tocada com instrumentos estrangeiros, cantada em língua estrangeira e produzida em estúdios estrangeiros por produtores estrangeiros pode ser portuguesa, e uma música cantada pela Nelly Furtado em português (supondo que a língua que Nelly Furtado fala quando pensa que está a falar português é, de facto, português) pode ser estrangeira.
Vamos supor que a Madonna é acometida de uma virose esquisita e resolve gravar um vira do Minho em português. Pode acontecer. É um sonho que tenho há muito: de repente, uma boa quantidade de artistas anglo-saxónicos decide que a língua inglesa é um bocado foleira e que as músicas ficam com muito mais pinta se forem cantadas em português. Pois bem, eis um facto chocante: o vira da Madonna não será considerado música portuguesa, por muito que ela esganice a voz, raspe no reco-reco e malhe nos ferrinhos. Por outro lado, a Ana Malhoa pode cantar o «Like a Prayer» da Madonna numa espécie de inglês - e canta, que eu já ouvi com estes que a terra há-de comer. Como é óbvio, a terra, se fosse minha amiga, tinha-os comido antes de esta infeliz ocorrência se ter verificado. O que me preocupa é que o «Like a Prayer» da Ana Malhoa, além de contar como música, o que já é estranho, conta como música portuguesa.
Espero não ser mal interpretado: não tenho nada contra a música portuguesa que é cantada em língua estrangeira. Mas tenho dificuldade em distingui-la da música estrangeira. Sobretudo, acho que se podia variar. Se a lei permite que a música portuguesa não seja, digamos, portuguesa, julgo que se podia arriscar um pouco mais. Por exemplo, compor uma boa música, palpitante de novidade, numa língua morta. «Discipulae rosas donant magistrae, nomine Iuliae». Dava um grande tema. Quanto mais não seja porque, se não estou em erro, anda para ali um ablativo. Alguém componha uma rockalhada em latim, se querem ver o que é bom. O genitivo nem tanto, mas o ablativo anima mesmo uma festa.


'Novas Crónicas da Boca do Inferno'
Ricardo Araújo Pereira

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